Imolação

Erilaine Perez (galega.perez@gmail.com)

Despi o pijama do sono, calcei os pés no dia. Fui abrindo as cortinas do tempo, respirando as coisas da vida, deixando a luz entrar. Em volta, pedaços de espera, resquícios de desencontro, frases inteiras caídas no chão, adjetivos pensados, mas não ditos; esperanças, quimeras...

O teu rosto emoldurando e imolando todas as coisas.

Inventariei, por um instante, cada objeto desse estranho habitat. Fiz silêncio para ouvir a voz dos substantivos, de todas as interjeições presas às paredes. E elas escorreram! Sim, liquefeitas, fluídicas. Restaram, ainda, os advérbios truncados teimando em dar tempo e lugar a tudo ali em volta...

O teu dedo apontando e imolando tudo.

Observei, uma vez mais, toda a desordem. Os ponteiros, mesmo agrilhoados, varridos para baixo do tapete, resistiam com ferocidade à empresa da batalha eterna. Ah! O som dos segundos jamais abandona nossos ouvidos. Os meus, os teus... é só tocar o pulso... e lá está ele... E se, enlouquecida pelo ritmo, cortasse o curso dos segundos? O relógio jorra. E é vermelha a sua vazão.

A tua lei impondo e imolando tudo.

Vesti a roupa das ruas, calcei sapatos de amarras. Fui fechando as janelas, expirando as coisas vistas. Colando a fragmentação dos sentidos. Pensares inteiros, ideias completas. Abri a porta. Segui o caminho igual ao de muitos dias. De todos os dias. O tempo parecia continuar preso às cortinas.

O teu tempo imolando o meu.

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