Vazio



Mais uma vez ela chega, sóbria e descontente, larga as chaves no mesmo móvel com marcas de copo de tempos felizes. Percorre o corredor branco e agora sujo, vai até a geladeira, pega mais uma daquelas pizzas e abre outra garrafa de Rum. Volta para a sala, chuta os sapatos deixados pelo caminho, bebe, fuma e chora em um ritual de martírio e saudação àqueles tempos em que, aquelas paredes frias, sofás, tapetes e mesas eram impregnados de cheiros e gemidos.

As recordações são interrompidas pelo cheiro de pizza queimada. O gosto de Rum, pizza e lágrima se misturavam, assim como a fumaça do forno e do cigarro. Os olhos se fixavam naquele telefone que há tempos estava mudo. Esperava que talvez ele tocasse, assim como esperava ouvir o barulho de chaves na porta, apesar desse ruído não ser ouvido a dias, meses, anos. Já não tinha mais controle do tempo nem conhecimento de dias.

Pensara inúmeras vezes em se mudar, mas a idéia de mover qualquer coisa lhe perturbava e desesperava. Quando a rua não emitia mais a poluição auditiva de todos os dias e o silêncio tornouse ensurdecedor a ponto de não deixá-la pensar, resolveu tocar naqueles CD's, agora empoeirados. Perdeu-se em pensamentos. Quando se deu conta, estava no chão entre almofadas, garrafas e cigarros sem conseguir sair dali. Adormeceu em um sono profundo e sem sonhos despertado por um bilhete deixado em baixo de sua porta, seu apartamento alugado seria vendido. O choro compulsivo veio, junto com ele a proximidade com aqueles comprimidos e garrafas e pós e cigarros deixados por ele. Sentia o líquido quente vazar por todos seus poros. O sono vinha lento e doce acariciando seus cabelos, rendia-se a ele devagar e, instantes antes de entregar-se por completa, ouviu ruídos que lhe pareciam familiar. Eram chaves na porta.

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